Antônio Hohlfeldt
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4/4/2008 - Jornal do Comércio
Poema de Jimenez vira espetáculo
Às vezes duvido que a platéia de Porto Alegre seja uma das melhores do País. Talvez a tevê a esteja tornando ruim. Platero e eu (1914), do poeta espanhol Juan Ramon Jimenez, Prêmio Nobel de 1956, na recriação musical que Maria Castelnuovo-Tedesco lhe fez após sua morte, em 1960, deveria receber mais atenção por parte de nosso público.Fui assistir ao espetáculo no Teatro de Arena. É uma pequena obra-prima. A forma de recitativo, comum ao tempo de Jimenez, foi devidamente recuperada por Castelnuovo-Tedesco, um dos grandes compositores espanhóis da modernidade, de sorte que temos aqui um duplo poema: o texto do escritor e a pauta do compositor.Que magnífica iniciativa esta de Taís Ferreira (narradora) e Thiago Colombo (violonista) ao buscarem uma obra, duplamente esquecida, para revelá-la ao público porto-alegrense. Confesso minha ignorância: quando, em janeiro, soube do espetáculo, imaginei uma "adaptação" do texto à cena e tremi. Ao assistir ao trabalho, vi, no programa, uma obra autônoma, reunindo texto e música. Um primor.A seleção dos capítulos-poemas de Jimenez foi alterada em relação ao texto original. Constrói-se, assim, uma outra narrativa. Taís Ferreira esmera-se em dar certa tonalidade, entre dramática e lúdica, ao texto: foi prejudicada, na noite em que assisti ao trabalho, pela sala que ecoava demasiadamente, pela falta de público. Mas é uma grande intérprete. Tem garra, emoção e convicção. O violonista Thiago Colombo é impecável. Juntos, mais os figurinos de Raquel Cappelletto e a iluminação de Fernando Ochôa, permitiram-nos um momento de suspensão do cotidiano e uma volta à sensibilidade, a um tipo de diálogo hoje quase impossível, em que a gente mergulha em si mesmo, reencontra as simbologias dos animais domésticos que nos acompanhavam (felizmente) e assim nos encontramos a nós mesmos.O espetáculo não merece qualquer senão. Seu ritmo é permanente e equilibrado. Taís Ferreira encara o espectador, estabelece com ele uma empatia eficiente. Sua emoção passa a cada um. Ao mesmo tempo, dialoga com o musicista e revive o asno Platero, idealizado por Juan Ramon Jimenez.Platero e eu é desses momentos de exceção para o espetáculo cênico. Nele, tudo está exato e equilibrado. E a gente simplesmente se deixa embalar pelo trabalho. Não sei se existe alguma gravação desta composição (Opus 190), mas em espanhol o texto deve ter ainda maior poesia, porque deve ter valorizado as palavras de Jimenez, que era poeta, aproximando-o da música de Castelnuovo-Tedesco. Recomendo emocionadamente este trabalho impactante. É dos que, quando acabam, a gente lastima. Parabéns a toda a equipe: primeiro, pela iniciativa. É disso que a cena artística precisa. Criatividade, ousadia, quebra de paradigmas e revelação de obras. É desses espetáculos que nos marcam e se tornam sempre um referencial.
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