Coluna Música - publicada no site http://www.artistasgauchos.com.br/
Felipe Azevedo
O título é um palíndromo e super pertinente ao espírito deste espetáculo. Explico. Assisti ‘Platero e Eu’ no seu período de estréia, talvez na sua quarta ou quinta apresentação, - entre 21 de março e 13 de abril de 2008, no Teatro de Arena de Porto Alegre, ali nos altos da Borges de Medeiros - e na época pude perceber que na aparente simplicidade e enxutez da sua produção técnica (uma luz pontual, um figurino básico, dois artistas em cena e num espaço cênico pequeno) um desafio bastante complexo e sutil delineava-se no projeto.
 ‘Platero e Eu’ propõe-se um espetáculo lírico que conta, através  da atuação cênica e da música ao vivo, as aventuras de uma amizade incondicional  entre um poeta e um burrico de nome Platero e ambos percorrem pradarias, rios,  vilarejos e vários ambientes bucólicos da Andaluzia na Espanha. Doce, poético,  melancólico e nostálgico é também forte e envolvente ao agregar música, teatro e  literatura.
Insatisfeito com as inquietações geradas pelo primeiro  contato com o espetáculo decidi então marcar um bate-papo com a atriz-narradora  Taís Ferreira e o violonista e também executor da trilha musical ao vivo, Thiago  Colombo, ambos também responsáveis pela iniciativa do trabalho.
Segundo  os artistas, dos 138 poemas em prosa originais de Juan Ramón Jiménez (1881 –  1959) cujo título é Platero y Yo, apenas 28 foram musicados por Mario  Castelnuovo-Tedesco (1895 -1968) divididos em quatro blocos de  sete, num formato melólogo para narrador e música - formato  este originário da tragédia grega e não mais usual hoje em dia – o qual  pretendia que fosse apresentado pelo violonista Andrés Segovia e com narração de  José Ferrez. Infelizmente devido à sua morte Castelnuovo-Tedesco não pode ver  seu sonho de estréia desta obra se concretizar.
A obra que Mario  Castelnuovo-Tedesco compôs intitula-se Platero y Yo, para narrador y  guitarra, op.190 (1960) e dos 28 poemas musicados, após seis meses de  estudo e ensaio, apenas onze quadros foram selecionados por Taís e  Thiago: platero, amizade, a ninadora, carnaval, a tísica, as andorinhas,  ronsard, o louco, brincadeiras ao anoitecer, a morte e melancolia.
Caso  a platéia deste espetáculo se proponha a escutar com os olhos e enxergar com  os ouvidos fica perceptível um aliciamento constante dos sentidos desta,  numa luta silenciosa onde música e narração – leia-se ação cênica –  problematizam a atenção e sutilmente a conduzem. E por que dito deste modo? No  contato com a partitura de Tedesco já na primeira cena (Platero - em compasso  composto doze por oito) – bem como em todas as outras – percebe-se que o texto  poético de Jímenez é cuidadosamente pontuado prosodicamente por Tedesco para  fins narrativos, agregando a este uma ambientação sonora que reforça, contrasta  ou contextualiza a dramaticidade textual do quadro cênico que será ou está sendo  apresentado. Na versão de Taís e Thiago “em muitos momentos eu conduzo a música,  em muitos a música me conduz” diz a atriz. O texto narrativo, por sua vez flui  com mais independência prosódica não se prendendo tanto à partitura. Ou seja,  para ambos a escolha interpretativa coloca “em pé de igualdade música e teatro –  teatro e música”. Para Thiago seis meses de ensaio serviram para um estudo  minucioso da fluidez nesta “matemática bruta do encaixe entre texto narrado e  música”.   A música não é apenas algo para acompanhar o ator! E será esta a  função da música de cena? “Não basta à música de cena ilustrar uma situação  dramática a partir dos elementos fornecidos pela narrativa verbal. É preciso que  ela explore os diferentes ângulos e que interfira com suas qualidades  específicas na encenação como um todo...” nos lembra o compositor Lívio  Tragtemberg no seu livro Música de Cena.
Para os artistas esta escolha  recaiu numa escuta mútua em cena onde ambos trabalham acima dos cem por cento, o  tempo todo, e de quebra se permitem defasagens e retardos na fluidez do  espetáculo, atingindo assim a aquisição de um ritmo próprio, um pulso mútuo  nesta respiração sempre aprimorada em cada apresentação.
É exatamente  aqui que a meu ver reside o desafio e o mérito maior deste projeto. Ao invés de  simplesmente narrar e se “ajustar” à partitura criada por Tedesco, ambos Taís e  Thiago ousam ao optar pelo caminho inusitado e imprevisível da exposição onde a  demarcação do ritmo cênico e musical não se restringe a uma partitura, apenas se  referencia nesta e a partir daí o extrapola através do exercício puro da atuação  e do aprimoramento deste pulsar mútuo.
Ao rever este espetáculo na curta  temporada deste ano no Teatro de Câmara Túlio Piva (28 de fev. a 1º. de março)  pude reforçar as impressões que tive na estréia: o diálogo cênico perceptível no  equilíbrio entre o volume entoativo na fala da atriz e no violão do músico, as  camadas de dramaticidade contrastando e ambientando-se mutuamente e finalmente a  respiração dos artistas no transcorrer do espetáculo possibilitando vislumbrar o  personagem maior de todo o trabalho – o Platero, sua presença e docilidade  fortemente visíveis no imaginário de quem estava na platéia.
Como toda  trilha bem elaborada, no transcorrer do espetáculo os pontos de escuta se  deslocam no plano narrativo, e neste sentido, mesmo adaptada, a obra de Tedesco  não perde tal intenção. Dois quadros contrastam significativamente neste  aspecto: a cena das andorinhas e a do louco. Nas  andorinhas o plano de luz, a exposição temática do violão e a  combinação tímbrica do tom de voz da atriz agregam funções que num plano  vertical geram uma sensação polifônica de escuta deslocando a percepção auditiva  em determinados momentos para um território de escuta ‘desatenta’, entretanto  está tudo ali acontecendo simultaneamente. Na cena do louco este  procedimento é potencializado pela ação cênica de ambos artistas, pois a  intensidade e os volumes sonoros conflituam favoravelmente a percepção da  platéia desencontrando o foco sobre  a quem deve-se atentar.
De quebra a  trilha executada ao vivo nos permite a escuta e o contato com o processo  criativo e composicional de um artista que entendia muito bem do riscado, pois  além de autor de mais cem obras para violão e que ironicamente era pianista,  Castelnuovo-Tedesco transforma literalmente o violão numa potente orquestra  explorando com sabedoria as tessituras e recursos tímbricos que o instrumento  possibilita a um compositor de sólida formação. Mesmo não tendo seguido a  carreira de compositor de trilhas para cinema sua concepção musical iluminou a  criação de outros alunos seus: Jerry Fielding, Jerry Goldsmith (L.A  Confidential), Henry Mancini (Pantera Cor de Rosa) e John Williams atual  parceiro de Steven Spielberg.
Conforme falei lá no início. É um  espetáculo que permite “RETER E REVER PARA PREVER E  RETER”.
23/06/2009
Felipe Azevedo é compositor e violonista, premiado com 5 prêmios Açorianos, além de prêmios em festivais locais e nacionais. Licenciado em Música (Centro Universitário Metodista – IPA) e Letras (PUC), o músico também estudou Harmonia, Contraponto e Forma e Análise com Fernando Mattos; Harmonia e Improvisação com Cristiano Kotlinski; técnica violonística com Eduardo Castañera e atualmente recebe Orientação Vocal aplicada ao seu trabalho de compositor com Lúcia Passos. Com 03 álbuns lançados Felipe está em fase de finalização de seu novo CD – Tamburilando Canções – Felipe Azevedo – Violão com Voz, prêmio FUNARTE – RJ.felipaz@terra.com.br www.felipercussive.blogspot.com 
 
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